Inevitavelmente soberania

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Artigo publicado originalmente em Sermos Galiza,
por Teresa Moure.

Dizem que o regedor duma cidade galega vem de declarar que a reivindicação de soberania está ultrapassada pelo momento histórico. Dizem que ele assegurou que prioriza os direitos sociais sobre a soberania. Talvez perceberam mal – os jornalistas, já se sabe – e ele nunca tal disse. Nisso quero acreditar porque uma declaração semelhante seria demagógica; destinaria-se a procurar a cumplicidade pública num momento de crise. Aliás, e mais grave ainda, estaria-se a demonstrar que não se entende nada de Política quando se convoca para atender o urgente sobre o necessário. Decidir entre pão ou justiça. Decidir entre dispor de eletricidade na casa ou ter capacidade de gerir os recursos. Decidir entre acabar com os despejos ou construir uma política de vivenda em defesa da classe trabalhadora. Essas dicotomias são absolutamente falsas: sem justiça social não há pão; sem possibilidade de administrarmos os recursos energéticos apenas sustemos os benefícios das empresas; sem soberania dependemos do que outros decidam fazer. Soberania é, portanto, igual a direitos sociais. Sem dicotomias. Quem nos declaramos independentistas não atuamos por estética, mas por ética. Não nos perdemos em palavras bonitas. Trabalhamos por uma alternativa política que assegure para a maioria invisível da população uma vida que pague a pena de ser vivida −a minoria bem estabelecida no sistema já a tem garantida−.

Como nos habituamos a que os médios de comunicação diluam toda a força das mensagens alternativas em conteúdos vácuos, os conceitos básicos da política parecem feitos, como sugeria Orwell, para dar aparência de verdade ao puro vento. Tudo é permitido. Vivam os jogos malabares! Despovoamento do rural, migração maciça da juventude, diretrizes económicas ao serviço do capital, recursos naturais minados por interesses alheios e desastres ecológicas irreparáveis obrigam, porém, a revalorizar o termo soberania, nunca a enfrentá-lo às necessidades mais elementares dum povo maltratado.

Um dia, os cientistas da natureza descobriram que a Terra era redonda. Não tinham grandes instrumentos de observação; conceberam a hipótese na pura teoria e pagaram bem caro, frequentemente com as suas vidas, uma afirmação que se opunha às crenças teológicas imperantes e associadas diretamente ao poder. Daquele momento, ninguém no seu bom juízo pode permitir-se duvidar de se a terra é redonda. Simplesmente ficaria desautorizado por se atrever a sugerir que é plana. Nas disciplinas menos empíricas, como a Teoria Política, instaurou-se, no entanto, um paradigma onde tudo, absolutamente tudo, pode ser matéria de opinião. Um observador ingénuo poderia pensar que esse paradigma é democrático, visto que o pessoal pode opinar à vontade. Na realidade, inaugurou-se o universo do tertuliano, esse ser que difunde as suas ideias sem contrastação mas que, como está colocado diante de poderosos microfones, consegue uma reputação que avaliza qualquer disparate. Por isso cumpre lembrar que o conceito de soberania remete diretamente à noção de poder: quem decide, como é que decide e porquê. No âmbito doméstico, se a dicotomia do regedor mencionado fosse certa, diríamos que uma pessoa poderia delegar em outra, deixando de decidir o que compra para que o decidisse o vizinho do lado, se assim assegurasse ter um prato na mesa. Mas ter ou não o prato na mesa dependeria exclusivamente nesse suposto da boa vontade do vizinho do lado. Daí, diferentes doutrinas políticas trabalhariam visualizando o conflito possível entre os vizinhos e os seus interesses ou minimizando-os, mas na lógica quotidiana, todo o mundo preferiria decidir sobre o seu. Isso é soberania.

No ano 2014 diferentes especialistas em Teoria Política, Economia, História, Linguística, Filosofia e Análise do discurso, junto a ativistas dos mais variados movimentos sociais foram convocad@s na Universidade de Santiago de Compostela por um Curso de Verão que tive a honra de dirigir. O título do encontro era Soberania(s): corpos, hábitos e territórios. Contra qualquer limite académico e desafiando a estreiteza habitual dos espaços universitários, trabalhamos as noções de Independência e Estado, a história do pensamento nacionalista galego, mas também o plano simbólico da defesa da língua e do seu futuro num âmbito internacionalista, o direito a decidir sobre o próprio corpo ou o território dos cuidados, espaços estes dois privados que entram em confluência com o público. Nessa perspetiva interdisciplinar, as noções e as práticas emanadas do feminismo, do decrescentismo, do reintegracionismo, da auto-gestão caminharam de mãos dadas com as tradicionais formas da esquerda independentista galega para obtermos resultados altamente satisfatórios do ponto de vista académico –por não falarmos em que eram revolucionários do ponto de vista político –. Daquela experiência extraio a conclusão de que Soberania é um conceito tão irredutível, tão potente e inquestionável como o da redondeza da Terra. Se ainda alguns julgam que podem prescindir dum tal conceito e manter-se em linhas minimamente transformadoras, provavelmente não estão corretamente informad@s, tal e como aconteceria se assegurassem que a Terra é plana. O fluir de ideias revolucionárias que emerge nesta altura na Galiza –dos ativismos de estrela vermelha às práticas autárquicas, das diversas praxes feministas ao desafio de se instalar na língua acossada pelo poder e mesmo a escrevê-la numa ortografia diferente da incutida na escola– compõem um leque amplo de estratégias que devem procurar sinergias conjuntas para dar alternativas reais num panorama político devastado e desolador.

No amplo espectro do soberanismo galego, fragmentado e plural, assistimos nas últimas semanas a diversas manifestações de fortaleza. Uma, a convocatória unitária dum Dia da Pátria. Outra, as distintas homenagens oferecidas ao combatente Moncho Reboiras, assassinado na Ditadura. Ambas têm uma alta potência simbólica. Porém ambas podem ser reinterpretadas no mundo dos opinadores. O 25 unitário pode ler-se como apenas uma maneira de encenar uma candidatura unitária perante determinados comícios eleitorais. Era muito mais que isso quando alguns discursos invocavam explicitamente a rutura democrática. As homenagens a Reboiras podem criticar-se como um obituário onde gastamos as forças em atos de consumo interno, que apenas conseguem eco fora dos nossos âmbitos imediatos. Mas a memória serve para alimentar a esperança. Obviamente, o ruge-ruge mediático e o nosso criticismo continuado podem minar tudo. Por isso talvez deveríamos convocar urgentemente a honestidade no atual panorama e não tolerarmos a simplificação. Para que ninguém possa afirmar que escolhe primar os direitos sociais sobre a soberania. Para que ninguém possa declarar que a Terra é plana.