Venezuela: causas, efetos e respostas a um grande revés

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NICNarciso Isa Conde

Ninguém com sentido da justiça e honestidade intelectual pode pôr em dúvida o carácter perverso da guerra económica –desabastecimento de bens de consumo, subtração de divisas, especulação comercial e financeira, e manobras para provocar a desvalorização da moeda– posta em prática pelos inimigos do processo bolivariano em Venezuela.

É também inegável o seu impacto negativo em termos político-eleitorais, potenciados pelo rol alienante da grande ditadura mediática mundial.

É claro, aliás, que a queda do preço do petróleo, induzida em parte pelos EEUU e aliados, fez significativos estragos à economia venezuelana e aos planos sociais do seu governo.

Houve –e há– muita sabotagem económica, múltiplas formas de acaparar, contrabando, evasões, especulações e estafas do grande empresariado privado em combinação com setores corrompidos do governo chavista, para não falarmos na manipulação desde a Colômbia do comercio legal e ilegal em detrimento do país vizinho.

Tudo isso é verdade, como o é que pôde ser melhor contra-restado pelo Estado Venezuelano, enfrentando áreas sensíveis do mesmo que foram contaminadas pela corrupção contra-revolucionária, implementando corretivos mais contundentes em matéria de controlo do sistema de divisas, de comercio exterior e banca privada.

A permanente ameaça militar dos EEUU aumentou o gasto militar da Venezuela em trocas da inversão pública, ao predominar a lógica de fortalecer sobretudo as forças armadas regulares em lugar dum desenho de guerra assimétrica, guerra de todo o povo, iniciativa realmente mais económica e mais dissuasora.

São muitos e difíceis, então, os fatores contra-revolucionários que têm operado –e operam– contra o processo bolivariano. Não tenho dúvidas de que foi –e é e será– assim.

Além dos ataques dos seus inimigos
Na Venezuela operam muito articuladas a contrarrevolução interna e a contrarrevolução imperialista, a teimarem não simplesmente numa restauração conservadora, neoliberal, dentro do “jogo democrático-representativo”; mas num pérfido projeto contrarrevolucionário e colonizador que implica a tomada do seu petróleo, de valiosos territórios e recursos estratégicos vitais.

Isto também, face à pretendida derrota política da insurgência armada e civil colombiana, ao debilitamento de Cuba, o Equador, a Bolívia, o Brasil e à desarticulação do Alba, a Celac e Unasur… e muito especialmente à conquista da Amazónia e as suas imensas riquezas; consumada já a viragem à direita da Argentina e outros contra-ataques prévios e diversos noutros países do Continente, entre os que destacam fortes golpes reacionários em Honduras e o Paraguai, e agora os avances da contraofensiva direitista no Brasil.

De maneira que este duro revés eleitoral, embora incompleto em vertentes chave para provocarem o giro total, não deve ser minimizado; muito menos apresentado do governo venezuelano como um suposto triunfo da democracia.

Trata-se realmente duma vitória das forças da reação, profundamente anti-democráticas, que evita analisar as causas e efeitos com a maior profundidade possível e além dos efeitos perturbadores dos inimigos jurados do processo, algo que toda revolução verdadeira deve dar por sabido.

Isto implica reflexionarmos sobre os erros próprios, sobre as linhas de condução, ritmos e profundidades das transformações.

Acho –e não o digo agora, mas disse anos atrás (1) e (2)– que o processo bolivariano deu sinais prontas de freios e estancamentos –mesmo em vida do Comandante Chávez–, após o formidável resgate da soberania nacional, do incomensurável abatimento do modelo neoliberal e dos extraordinários avances na linha duma democracia participativa e um crescimento da consciência anti-imperialista, anti-capitalista e pró-socialista. Depois, ademais, de avançarem os transcendentes processos de integração e cooperação entre estados latino-caribenhos.

Precisamente no momento em que era necessário e possível aprofundar no processo, o peso morto do muito que ficara do velho Estado, as consequências negativas de construir o partido da revolução desde esse Estado, a estatização (não socialização) duma parte da economia privada, a influência das velhas práticas políticas da “quarta república” (clientelismo, paternalismo estatal, populismo), a aparição da nova corrupção e da cultura de rendas do petróleo em detrimento dos projetos cooperativos e co-geridos, o dispêndio de recursos, o predomínio dos interesses de Estado em detrimento do internacionalismo revolucionário, começaram a desgastar o gume revolucionário do processo, ao não serem devidamente contra-restados.

Tudo isto deixando intacta uma parte fundamental do capitalismo privado local e transnacional, assim como os nutrientes dos seus instrumentos políticos de velha e nova data; o que possibilitou (paralelamente ao desgaste da revolução) a recomposição e acrescentamento das forças afins ao grande capital, particularmente aquelas que surgiram do coração do empresariado contrarrevolucionário e a burguesia transnacional como forças de relevo das velhas partidocracias adecas e copeianas.

Um grande capital a agir no sistema financeiro, nos sectores industriais e agropecuários, nas comunicações, no comercio interior, no comercio exterior, em serviços variados (incluída parte da saúde e a educação), e colateralmente no mundo energético; o que lhe outorgava –e outorga-lhe– poder para perturbar o processo e nutrir as direitas de todos os tipos.

Ao para-militarismo colombiano deixaram-lhe ganhar demasiado terreno no contexto da distensão das relações inter-estatais colombo-venezuelanas.

A defesa do processo do povo armado e duma ótica grande colombina e latino-caribenha, sempre foi mal vista; de maneira que descansou em grande medida essa missão nas forças regulares e nas reservas militares, o que facilitou a acumulação de violência contra-revolucionária interna e a chantagem norte-americana e colombiana.

A política exterior do Estado, impregnada das normas diplomáticas, impôs-se também como política exterior do partido e os movimentos sociais instrumentalizados, debilitando o internacionalismo revolucionário.

A nova corrupção e o novo sistema de privilégios cresceram demais nas filas governamentais e nas estruturas de mando do Estado e do PSUV.

O plano de reconversão da economia de rendas do petróleo e importadora de bens de consumo e de capital a uma economia produtiva, ficou secundarizado; comprometendo enormes recursos na importação de alimentos, artigos de primeira necessidade, maquinarias e bens que poderiam produzir-se na Venezuela. Isto foi criticado com muita antecipação (3).

Agora, 7 anos depois, o presidente Maduro refere-se ao tema como fator colateralmente influente na recente derrota eleitoral e propõe assumi-lo como uma meta pendente e imperiosa.

As tendências socializantes ficaram apenas plasmadas numa distribuição mais justa da renda do petróleo, importantes missões sociais, embriões de poder comunal, leis e projetos sociais audazes com limitados índices de eficiência e deformações eleitoralistas na sua aplicação, e baixos rendimentos. Todo o tema do poder comunal, do poder popular, ficou danado pelo poder burocrático do Estado e o peso das instituições e dos métodos políticos tradicionais.

O socialismo tornou mais retórica e palavras de ordem ocas que transformações anti-capitalistas reais na economia, a política e a cultura. A lógica e a cultura capitalista perduraram e reapareceram algo que o próprio Chávez advertira.

A socialização da grande propriedade privada capitalista, da produção, do grande comercio, dos serviços básicos privatizados, do sector financeiro e do poder, primeiro foi colocado a um lado e depois –vigentes os “pactos de governabilidade” com a grande burguesia– tornaram temas tabus; confiando o desenvolvimento das forças produtivas a um capital privado que nunca teve essa vocação. Igual se passou com a substituição progressiva do sistema de preços por um sistema de equivalências.

Continuou a chamar-se de socialismo uma mistura desordenada de post-neoliberalismo, anti-imperialismo, nacionalismo, capitalismo privado em grande escala e liberalismo político; eliminando as exigências do trânsito para um projeto socialista novo: participativo, inclusivo, profundamente libertário e integral.

Declinação eleitoral
Tudo isto, tudo o que implicava negação de esperanças e certezas positivas, começou a desgastar as bases populares e a força eleitoral do PSUV e aliados. Em 2008 inicia-se esse declive progressivo, com pontuais subidas em que se empregou o calado profundo do liderado de Chávez.

A direita e a direita extrema, esta última com um forte ar fascista, superaram em vários comícios sucessivos o 40% dos votos válidos, aproximando-se cada vez mais ao nível das forças chavistas e tornando uma real ameaça no período post-Chávez.

Nenhuma advertência prudente sobre as causas dessa perigosa tendência nacional, alimentada do exterior imperial, foi devidamente ponderada pelo núcleo bolivariano.

Chegado um momento, apenas Chávez –após sucessivas promessas de retificações adiadas– percebeu os riscos iminentes do estancamento e lançou as suas ideias naquele Aló Presidente especial, batizado na sua edição especial como o necessário “GOLPE DE LEME”, de profundo conteúdo auto-crítico e retificador, e depois formulou o PLANO da PÁTRIA com um sentido semelhante.

Em tais formulações sugeria-se “dinamitar” o Estado criado nessa primeira fase, trespassar todo o poder às comunas, criar poder popular eficaz e avançar numa linha de superação do arraigado “rendismo petroleiro”, desmontar o capitalismo e a sua cultura, e socializar radicalmente a economia e o poder.

O falecimento do líder clausurou, se calhar, essa necessária possibilidade. Os seus sucessores, perante as grandes dificuldades criadas a raiz do disputado processo eleitoral em que Nicolás Maduro ascendeu à Presidência, e perante o auge da desestabilização violenta, optaram por negociar com a grande burguesia e os seus instrumentos políticos, a fazer importantes concessões; entrando mais tarde num tira-puxa superficial; umas vezes com discursos apaixonados e outras com palavras de reconciliação.

As direitas e os EEUU, com determinadas inflexões e giros, mantiveram a sua estratégia de desgaste do regime e das forças chavistas; enquanto o chavismo de arriba, já não tão chavista, praticou reações defensivas e políticas e atitudes que estancaram e desnaturalizaram, ainda mais, o processo bolivariano.

Consequências dos estancamentos e retrocessos
Revolução que se estanca é revolução que retrocede, tanto pelos avances da contra-revolução interna como pela pressão e ação da contra externa, integrada pelos EEUU e importantes potencias capitalistas europeias. Já se formulara esta importante sentencia histórica em relação com o promissório processo venezuelano.

O retrocesso ao interno expressou-se numa progressiva perda de apoio popular e um crescimento do descontento pelo impacto combinado das inconsistentes políticas do regime e do agir inimigo.

Nesse contexto, infelizmente, o genuíno interesse de impedir o retrocesso e enfrentar as direitas, junto com a forte tutoria estatal sobre uma parte do movimento revolucionário, influiu demasiado para que não fosse abordada de maneira equilibrada essa dualidade dentro do processo; debilitando-se sensivelmente a independência dos fatores críticos e o movimento próprio de amplos sectores das esquerdas sociais, políticas e culturais descontentes com o estancamento e a forma de proceder do regime bolivariano.

A mística debilitou-se até fazer possível este recente “pau eleitoral” das direitas unidas pelo seu amo imperial. Esta possibilidade foi formulada pelo autor deste artigo com muito adianto, e sugeri praticar as retificações e a viragem recomendadas pelo próprio comandante Chávez. (4)

Desprezar as diretrizes do GOLPE DE LEME, resistir-se a aprofundar nas transformações, reduzir em boa medida a necessária socialização a simples palavras, evadir um ataque a fundo à corrupção estatal, recusar a radicalização que implicava não só ficar na fase post-neoliberal do processo mas avançar para o derrubamento do capitalismo privado e de Estado, teve um enorme custo político para os sucessores do Comandante Chávez e para o processo bolivariano, hoje com mais riscos de ser revertido que ontem.

Perderam o controlo do Poder Legislativo, que agora poderá ser usado pelas direitas para impulsarem com mais energia o seu projeto contrarrevolucionário integral, incluídos o esforço para anular leis habilitantes, as contra-reformas constitucionais e muito especialmente o referendo revogatório contra o presidente Maduro, se entenderem conveniente não esperarem aos próximos comícios presidenciais.

O PSUV e o GRANDE POLO PATRIO TICO conservam algo mais do 40% do eleitorado, o poderoso Poder Executivo, outros poderes estatais e uma grande capacidade de mobilização, que dariam para muitas coisas se existisse na Direção desse processo uma clara vontade a favor duma viragem revolucionária, resultante duma autocrítica sincera e profunda, traduzida de imediato em factos.

Confesso a minha desconfiança nessa possibilidade.

A resposta necessária
Confio sobretudo na radicalidade popular, que é possível dinamizar em forma ascendente numa etapa em que se vislumbra mais facilmente a possibilidade de perder todo o conquistado, menos a consciência e organização acumulada; numa etapa em que se conformam –dentro e fora do PSUV e do Grande Polo Patriótico–, e no seio do povo-povo, correntes e blocos revolucionários que assumam a ideia de defenderem e aprofundarem no processo a qualquer preço.

Tenho-o dito dantes, sem conseguir a acolhida necessária, que a chave está em contornar o socialismo como simples retórica ou demagogia de esquerda e plasmá-lo em factos; assumindo-o como programa que deve ser aplicado com coerência em transição revolucionária para o novo socialismo; interiorizar as recomendações de Chávez contidas nas teses do GOLPE DE LEME e em grande parte do PLANO da PÁTRIA, e tomar as ruas, caminhos, centros de trabalho e de estudos e as praças, como início duma grande viragem política: assumir isto como pensamento e ação para revertermos a tendência que favorece as direitas na competência política e ideológica atual.

Uma viragem que procure articular as forças transformadoras da sociedade civil popular com as que perduram no interior do chavismo real, anti-capitalistas e pró-socialistas, no seio de diferentes enclaves de poder civil e militar.

Isto implica elevar a condição do extra-institucional, fortalecer a independência dos movimentos sociais e políticos contestatários no que diz respeito ao Estado, preparar-se para cercar e isolar o poder legislativo sob o controlo das direitas e criar novas situações que possibilitem retomar a ofensiva. Combinar, aliás, o rejeito categórico ao retrocesso em marcha com a autonomia necessária frente a órgãos estatais que se resistem ou evadem a viragem para a esquerda e para o verdadeiro socialismo. Voltar a ser força determinante, criando à vez vanguarda ativa.

Talvez seja tarde para impedir o retrocesso total.

Talvez não.

Porém, o que não é válido, é se render, a consciência de que do agir revolucionário depende incluso de que o retrocesso ou intentos maiores nessa direção –em todo o caso ou eventualidade negativa– durem pouco.


1.“Nesse sentido, acho que se perdeu um tempo precioso, desaproveitou-se o rude golpe dado à oposição de direita, deu-se oportunidade para a sua recomposição, deu-se pé a um certo desalento popular e concedeu-se tempo às forças oportunistas, às partes brandas do regime, para continuar a atuar com a sua velha lógica degradante.”

“A corrupção continuou a crescer, o clientelismo estatalista também. Os novos ricos “chavistas” fortaleceram-se e os velhos ricos conservaram poder económico e social. A nova direita capitalista incrustada no governo fez pouco pelo SIM, ao tempo que gerava muito rejeito no povo… Como não se interessam por aprofundarem no processo para a revolução, trabalharam a passo de tartaruga na campanha do referendo. (Narciso Isa Conde, El REVÉS DEL SÍ EN VENEZUELA: POSIBLES CAUSAS Y SOLUCIONES”, marzo 2008, Rearmando la Utopía, pág. 357 e 358)”

2.“A falta de socialismo, os deficits na socialização da economia e do poder, e os desvios no plano ético-moral -presentes e crescentes depois de nove anos de iniciado o processo para a revolução- constituem os principais adversários com um grau muito mais alto de legitimação eleitoral da mudança empreendida e também em fatores objetivamente aliados das direitas.”

“Muitos se dilatou o liderado da revolução e as suas forças motrizes em enfrentarem esses fatores e linhas negativas. Mas ainda há tempo para retificar e para o processo tomar rumo. Tempo e forças. (Narciso Isa Conde.-“Venezuela: una victoria insuficiente”,10 de diciembre 201O REARMANDO LA UTOPÍA, PAG 364,)”

3.“A produção de alimento, a superação do desabastecimiento, a recuperação e o controlo social sobre o Mercal, a maior eficiência das missões, a economia de equivalências e a socialização dos grandes recursos em mãos da oligarquia e as transnacionais deveria avançar firme e progressivamente, sem cair na estatização burocrática. O modelo produtivo deve situar-se entre as prioridades junto à superação da “cultura do petróleo” geradora do consumismo e o esbanjamento de recursos, que à sua vez reforçam a dependência alimentar.

O ataque da oposição e do imperialismo, que aspiram a reverter esse processo gerador de grandes esperanças a escala continental e mundial, não demorará. Os planos da administração Bush e do governo de Uribe, que servem de instrumento, estão em marcha. Urge um golpe de leme interno que harmonize com o combate anti-imperialista despregada com novas energias na política exterior. (Narciso Isa Conde, El REVÉS DEL SÍ EN VENEZUELA: POSIBLES CAUSAS Y SOLUCIONES”, marzo 2008, Rearmando la Utopía, pág. 359 e 360)”

4. “A força eleitoral da contrarrevolução… radica ainda na força económica do grande capital privado local e transnacional, no seu poder mediático, na sua hegemonia cultural nutrida por esses meios e nas suas fábricas de ideologia capitalista, nas suas propriedades e operações financeiras, industriais e comerciais, no poder reversível que conserva em áreas de serviços, colégios e universidades, na corrupção burocrática, no capitalismo de Estado…”

“E essa correlação mudaria radicalmente em favor da revolução com uma reconfiguração das forças de vanguarda e um impulso categórico à socialização (que não é igual à estatização), bem pensado, paulatino, sustido, firme e ascendente; acompanhado do estímulo continuado às mudanças revolucionárias a nível continental e mundial.”

“Não há mais. Revolução que se estanca e isola, debilita-se, retrocede e sucumbe. Revolução que avança, aprofundando, radicalizando-se no seu interior e além, é muito difícil de derrotar.”(Narciso Isa Conde, .-“Venezuela: una victoria insuficiente”,10-12-2013, Santo Domingo, RD, Obra Citada).

9-12-15, Santo Domingo, RD