40 ANIVERSÁRIO DO AUTOGOLPE DE ESTADO DE 23 DE FEVEREIRO
Coincidindo com o 40 aniversário de um dos capítulos mais opacos do postfranquismo, novamente reproduzimos a análise elaborada por NÓS-UP em 2008.
No número 20/21 do “Voz Própria” -a revista teórica do independentismo socialista galego-, era publicado no dossier central um monográfico intitulado “A ilegitimidade da democracia espanhola”.
A dia de hoje o seu impecável diagnóstico segue plenamente vigente e atual.
O autogolpe de Estado do 23F é um dos maiores enganos ao que foi submetida a populaçom polos aparelhos de manipulaçom do sistema. Exprime os limites de umha democracia burguesa emanada da ditadura fascista e as impossibilidades reais de alterar a sua natureza mediante a lógica do parlamentarismo.
MITOS E FALÁCIA DO 23F
Os acontecimentos desenvolvidos a 23 de Fevereiro de 1981, quando um grupo de Guardas Civis ao mando do Coronel Tejero assaltam e tomam o Parlamento espanhol e, simultaneamente, Jaime Milans del Bosch, Capitám-General da III Regiom Militar sediada em Valência, declara o estado de guerra ocupando com dúzias de tanques a cidade mediterránica, é um dos capítulos mais obscuros daTransiçom espanhola, mas também dos que deixárom umha profunda pegada na memória colectiva.
Contrariamente à versom oficial, o regime aproveitou a tentativa de auto-golpe de estado desenvolvida, coincidindo com a sessom em que se ia votar a eleiçom de Calvo Sotelo como substituto a Suárez, para aplicar umha involuçom política no processo de reforma franquista, basicamente para legitimar a monarquia bourbónica e marcar ainda mais os estreitos limites desta pseudodemocracia tutelada e sempre vigiada polos denominados eufemisticamente poderes fácticos.
A complexa conjuntura política da altura estava determinada pola grave crise interna do partido governamental, que tinha provocado semanas antes a demissom de Adolfo Suárez como presidente do Governo espanhol e também da UCD. A fragilidade interna da agrupaçom criada aceleradamente para pilotar a Transiçom saltara polos ares polos confrontos antagónicos entre as diversas correntes que co-existiam no seu seio.
O PSOE mantinha umha permanente pressom -até o extremo de empregar a moçom de censura- para impor a tam desejada alternáncia política. A Alianza Popular de Fraga Iribarne levava meses à procura de fórmulas para que Suárez a incorporasse ao governo e para que a UCD delimitasse o seu espaço político natural, que considerava estava ilegitimamente apropriando.
No grande poder fáctico, o Exército, existia um enorme mal-estar perante as formas e ritmos em que se estava a aplicar a Transiçom. A oficialidade franquista considerava excessivamente acelerado o processo em curso, nom concordava com a legalizaçom do PCE, dissentia da descentralizaçom adminsitrativa que identificava, de forma alarmista, como a antessala da destruiçom de Espanha. A todo isto, devemos acrescentar a crispaçom que gerava a intensa actividade armada da ETA, e dos GRAPO em menor medida, e a morna resposta de Suárez no combate ao “terrorismo”. O Exército demandava intervir directamente na luita contra as organizaçons armadas.
A política de ascensos aplicadas polo governo promovendo o ascenso de oficiais menos identificados com o franquismo mais doutrinário, saltando-se a hieraquia interna, e acelerando o passo à reserva dos militares claramente golpistas, contribuia a elevar a tensom, gerando enorme malestar nos quartéis.
Nom devemos desconsiderar que, no imediato período posterior à morte de Franco, fôrom constantes as tentativas de reconduzir a situaçom por parte do sector mais franquista. Nas salas de bandeiras gorárom-se diversas tentativas de golpe de estado: conspiraçom de Xátiva em 1977, Operación Galaxiaem Novembro de 1978, movimentos nas estratégicas unidades da BRIPAC em Janeiro de 1980, entre outras. Nom era nengum segredo que o exército espanhol nom se identificava nem coincidia com a reforma pactuada do regime que impugera pola força em 1936.
Embora os Pactos da Moncloa estivessem já assinados, o período era de grande agitaçom social, multiplicando-se as greves e as luitas operárias. A burguesia era incapaz de lograr a estabilizaçom que tanto procurava.
Na hora de abordarmos esta etapa, nom devemos desconsiderar a conjuntura internacional de agudizaçom da Guerra Fria entre as superpotências imperialistas, após a chegada de Ronald Reagan à Casa Branca. A Administraçom norte-americana nom descartava a possibilidade de um confronto nuclear limitado ao palco centro-europeu. Para o seu sucesso, era imprescindível contar com a plena adesom do Estado espanhol, pola posiçom geo-estratégica que ocupa a Península Ibérica. Washington levava tempo a promover governos fortes proclives a soluçons militares nos países aliados do ámbito mediterránico: Grécia, Itália, Turquia, Marrocos, Egipto; e o governo de Suárez mantinha elevadas doses de indecisom e umha política internacional de excessiva neutralidade. Nom tinha adoptado as medidas acordadas em política exterior implementando a tam desejada incorporaçom do Estado espanhol na NATO e na CEE.
CONJUGAÇOM DE DIVERSOS GOLPES
Contrariamente à versom oficial que de forma teimosa foi imposta sem a mais mínima concessom à dúvida ou questionamento nos meios de comunicaçom, até a converter em dogma de fé, no 23 de Fevereiro conjugárom-se vários golpes que finalmente nom se “complemetárom” pola falta de sintonia nas prioridades dos objectivos por parte dos principais actores.
Antonio Tejero Molina, convertido posteriormente em bode expiatório, quando ocupa as “Cortes”, e o general Miláns del Bosch quando ocupa Valência, estavam firmemente decididos a implantar pola força um governo militar legitimado pola monarquia, estavam a dar um golpe de estado ao estilo grego, que pretendia simplesmente impedir o desenvolvimento do sistema constitucional acordado na Transiçom, tencionando forçar um governo militar com ligaçons directas com o franquismo. Representavam o mais reaccionário do estamento militar, que desprezava a democracia burguesa.
Mas Tejero também estava a ser manipulado para o sucesso de umha manobra que desconhecia, promovida polo general Alfonso Armada -um monárquico vinculada ao Rei, durante anos foi Chefe da Casa Real e um dos principais assessores de Juan Carlos- que contava com a cumplicidade de sectores da UCD e das cúpulas do PSOE, AP e do PCE, e obviamente a operaçom promovida polo denominado “elefante branco” nom podia ser alheia ao conhecimento da Zarzuela e da embaixada norte-americana.
A operaçom que Armada, nomeado dias antes segundo Chefe do Estado Maior (JEME), baptizou comoDe Gaulle, procurava forçar, após a “providencial” intermediaçom do Rei, que demorou mais de seis horas a se posicionar no famoso discurso televisivo, passadas as 12 da meia-noite, um governo deconcentraçom ou salvaçom nacional, conformado polos principais partidos do sistema sob a presidência de um militar -ele próprio- para reconduzir e estabilizar a situaçom de crise profunda do processo pactuado na Transiçom, aplicando as decisons estratégicas que reclamavam o grande capital e o imperialismo.
Juan Carlos também lograria assim, tal como realmente aconteceu, um reconhecimento e legitimaçom democrática despreendendo-se da mancha original de ser um monarca imposto por Franco; e, perante umha série de decretos de carácter urgente, seriam marcados os límites involucionistas em diversos aspectos da acçom governativa, basicamente no desenvolvimento do Estado das Autonomias e em certos direitos democráticos fundamentais como o de expressom. Deste jeito, conseguia-se incorporar o exército ao processo e satisfazer as demandas de ordem por parte da burguesia.
O fracasso foi conseqüência, fundamentalmente, do desconhecimento por parte de Tejero e da trama civil do golpe vinculada com a extrema-direita dos verdadeiros objectivos tácticos que procurava a operaçom. O coronel da Guarda Civil recusou aceitar um governo com a presença de ministros do PCE, tal como lhe propujo Armada.
Coincidindo com o vigésimo aniversário do golpe, em 2001, diversos meios de comunicaçom filtrárom a composiçom desse governo de “salvaçom nacional” desenhado polos golpistas. Os ministros que acompanhariam o presidente Alfonso Armada seriam Felipe González (Vicepresidente para Assuntos Políticos), José María López de Letona (Vicepresidente para Assuntos Económicos), José María de Areilza (Negócios Estrangeiros), Manuel Fraga Iribarne (Defesa), Gregorio Peces Barba (Justiça), Manuel Saavedra Palmeiro (Interior), José Luis Álvarez (Obras Públicas), Miguel Herrero de Miñon (Educaçom), Jordi Solé Tura (Trabalho), Joaquín Rodríguez Sahagún (Indústria), Carlos Ferrer Salat (Comércio), Antonio Garrigues Walquer (Cultura), Ramón Tamames (Economia), Javier Solana (Transportes e Comunicaçons), Enrique Múgica Herzog (Sanidade), Luis María Ansón (Informaçom) e José Antonio Saénz de Santa María (Autonomias e Regions).
Os dous militares que conformariam esse executivo junto com Armada fôrom promovidos semanas depois da operaçom golpista. O general de divisom Manuel Saavedra Palmeiro foi ascendido polo Conselho de ministros de 20 de Agosto de 1981 a Tenente-General do Exército de Terra, além de ser designado Capitám-General da II Regiom Militar com sede en Sevilha, e Saénz de Santa María também foi ascendido a Tenente-General, assumindo o comando da Capitania da VII Regiom Militar, com sede em Valhadolid, e posteriormente da IV, com sede em Barcelona. A 2 de Novembro de 1983, un ano após a chegada do PSOE à Moncloa, voltou à Guarda Civil como Director-General.
Os golpistas estám hoje todos na rua, após terem cumprido mornas e privilegiadas penas de prisom. Armada, depois de 6 anos preso, foi indultado para se reformar e tratar apracivelmente das camélias no seu paço de Santa Cruz de Ribadulha; Tejero, cumpridos uns anos mais, também viu atenuada a sua pena. Miláns del Bosch, falecido em 1997, fora libertado em 91, após nove anos de prisom.
CONSEQÜÊNCIAS
A conspiraçom fracassou tal como a tinham desenhado Tejero, Miláns e a extrema-direita militar e civil, mas foi todo um êxito nos seus objectivos reais. O “golpe de leme”, na afortunada expressom com que Josep Tarradellas definiu o 23F, conseguiu aplicar a involuçom que procurava a burguesia, impor um novo consenso no consenso da Transiçom na hora de limitar as reformas e a velocidade das mesmas, e avançar no bipartidarismo entre o PSOE e AP/PP, à custa da UCD e do PCE. A esquerda radical espanhola naufragou definitivamente e a esquerda nacional galega viu-se envolta numha profunda crise que provocou a sua reformulaçom, em Setembro de 1982.
As conseqüências imediatas do 23F fôrom: a incorporaçom na NATO; a aprovaçom da LOAPA (Lei Orgánica de Armonizaçom do Processo Autonómico), que paralisou o processo de descentralizaçom e homologou as 17 autonomias seguindo a lógica de café para todos; a Lei de Defesa da Constituiçom ou “Antiterrorista”, que converteu a “carta magna” num texto sagrado de obrigada veneraçom e constrangiu ainda mais o exercício da liberdade de expressom ao ponto de nos anos posteriores o Governador Civil da Corunha impossibilitar à esquerda nacionalista manifestar-se na zona velha de Compostela.
Por esta Lei, aplicada com carácter retroactivo, fôrom expulsos do primeiro parlamentinho os três deputados do Bloque, após se negarem a jurar ou prometer a Constituiçom; por esta lei, era delictivo definir a Galiza como naçom; por esta lei, qualquer opiniom contrária à unidade espanhola podia ser penada com multas e detençons.
Nesta etapa, os maus tratos, as torturas e os assassinatos estendêrom-se nas esquadras policiais e quartéis da Guarda Civil, e criarom-se as condiçons para a guerra suja dos GAL, previamente ensaiados polos diversos grupos terroristas para-policias, como o Batallón Vasco-español. O exército conseguiu a sua desejada demanda de intervir no combate contra a ETA, despregando-se na fronteira pirenaica.
Mas também conseguiu disciplinar ainda mais a populaçom, induzindo temor e medo, esse perigo à involuçom e ao golpismo fomentado polo PCE e o PSOE para desmovimentar a classe trabalhadora, numha sociedade que ainda continuava mediatizada polo holocausto de 1936.
A direita e a extrema-direita sentiu-se legitimada na sua violência e a repressom laboral aumentou nas empresas, com despedimentos por razons de índole política ou activismo sindical. O 23F acelerou o desencanto e a desmobilizaçom sociais, o afastamento de amplos sectores populares da actividade sociopolítica, a moderaçom e a procura do politicamente correcto em boa parte das organizaçons políticas e sociais da esquerda.
O PSOE, com a vitória eleitoral de outubro de 1982, apoiada polo grande capital, aplicou obedientemente boa parte dos objectivos que perseguia o 23F, tornando realidade os prognósticos de Franco de “que todo fica atado e bem atado”.